quarta-feira, 28 de julho de 2010
Saída discreta
No filme "Ajuste Final" (Miller's Crossing), dos irmãos Coen, tem uma cena em que Gabriel Byrne provoca a ira de Marcia Gay Harden ao ironizar a baixa afluência de amigos no enterro de John Turturro. O cara não valia nada e era malvado toda vida. É o tipo de problema que não pode ser resolvido com uma farta distribuição de convites. Estive fazendo as contas e acho que no máximo duas pessoas estarão presentes no meu funeral. Isso se minha filha não tiver prova no dia, como já aconteceu. Não, eu nunca morri antes, mas ela já teve que faltar a eventos importantes por causa do ingrato calendário de provas. Impossibilitada de comparecer ao meu casamento com a mãe dela, ela foi muito bem representada por uma amiga de infância, agora minha madrinha. Isso deixa a questão do público no meu enterro restrito à minha mulher. Isso se não tiver sessão no centro espírita no dia em que eu bater a cassuleta. Minha mulher vai preferir ir ao centro, onde estará meu espírito, cheio de novidades fresquinhas do além, do que ir ao cemitério, acompanhar meu corpo cansado de tantas batalhas perdidas.
Para resolver evitar problemas de agenda, vou deixar instruções para que enviem meu corpo por Sedex para algum cemitério distante, que aceite frete a cobrar. Imagino que haja cidades precisando de voluntários para inaugurar seus cemitérios. E muitos prefeitos do tipo Odorico Paraguassu dispostos a pagar para que isso aconteça. Alguém pode dizer que, indo por Sedex, vou sobrecarregar a coluna vertebral do carteiro. Asseguro-lhes que não. Existem viaturas fazendo a entrega e posso ser acomodado no banco do carona, na janela, com a língua para fora, como o vira-latas que eu sempre fui em vida. Meu testamento vai dar pouco trabalho: deixo minhas canetas vermelhas para minha mulher, à guisa de rosas apaixonadas, e as azuis para minha filha, que sempre gostou de ver a chuva. Levo as pretas comigo: vai que o funcionário do cemitério precise de alguma emprestado para anotar as melhores frases durante o discurso do prefeito durante a cerimônia que, na minha trajetória, será o ponto final.
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Kkkkkk......
ResponderExcluirAlvaro, me desculpe! Mas este seu texto me fez rir da morte; achei a situação engraçada. Uma leitura alegra da única certeza que temos na vida: a morte nos chegará, cedo ou tarde.
Não gosto de pensar na morte, pois, não tenho simpatia por ela. Mas o modo como você a pensa faz com que ela me pareça uma senhora simpática, embora, o cenário composto por suas palavras tragam humor, eu na entrelinhas também leio tristeza. Acho que é este sentimento de despedida desta vida que sempre nos parece tão curta, para a gente que tem tanto sonhos; este fato de ir pra sei lá onde: céu, inferno, reencarnar, psicografar... Ir pra sei lá onde. Tem horas que isto aqui é tudo e eu tenho medo de uma coisa que a série de TV Sobrenatural me ensina na fala de Sam Winchester: "...ninguém no fundo tem certeza de nada que acontece quando o fio da vida se rompe; porque quando isto acontece cada um segue um caminho que a gente não tem certeza se será melhor ou pior, e nem se sabe se há caminho. Tudo que a gente tem uma esperança cega."
Pensado nisto, gosto que seu cegueira seja uma leitura bem humorada de sua história.
Um abraço!
Sou de poucas palavras e letrinhas...rss
ResponderExcluirsó venho aqui pra ler as delícias que você escreve
tão bem, com tanta sutileza e desembaraço.
Além de poeta incrível, é um crítico bárbaro de cinema...rss
beijão poeta
£una
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