sábado, 20 de fevereiro de 2010

Ornitorrinco, narval e outros bichos


As organizações ambientais não acordaram ainda para o apelo ecológico que existe nos sobrenomes de animais e árvores. O cidadão comum se apegaria mais ao meio ambiente se reparasse na grande quantidade de pessoas que têm como nome de família Coelho ou Carneiro, Nogueira ou Loureiro. Uma vez, ao contar uma história, minha filha riu quando inventei um personagem chamado Joaquim Rinoceronte da Silva. Foi um exagero, é claro, mas leão também é selvagem e africano e ninguém estranha como sobrenome. Já vi repórteres iniciantes ligando, sem saber, para o Jardim Zoológico, e pedindo para falar com o Dr. Leão.
Vejo com prazer e interesse uma campanha em favor de alguma lei que permita às pessoas adotar o nome de um bicho como sobrenome. Quem vai se recusar a doar uma modesta quantia em favor da preservação do urso polar ou do pinguim se este for também seu sobrenome? Acredito que, entre os cães, os nomes mais procurados seriam Pit Bull e Poodle, por razões bem diferentes. Lutadores de vale tudo, os mais letrados pelo menos, talvez optassem por Tiranossaurus Rex, que existiu, ou Godzilla, que é fruto de uma alucinação coletiva dos japoneses.
Esta campanha acabaria com o privilégio do Leão como nome de família. Surgiriam as famílias Guepardo e Leopardo, para citar os grandes felinos. Alguns animais deixariam de ser adotados por causa de preconceito, e acabar com isso seria o objeto de uma nova campanha. As crianças, que amam os bichos mais do que todos, seriam fundamentais neste trabalho de combater a discriminação, tal é o fascínio que exercem sobre elas a girafa, o rinoceronte, o elefante, o hipopótamo, o gnu e a zebra, apesar do pescoço comprido de uma, do sobrepeso de outros e do pijama listrado desta última. É claro que vai ser muito difícil reabilitar criaturas como a hiena, o porco, o chester e a ave fiesta.
Pessoas que normalmente não teriam nunca a oportunidade de viajar até a Austrália ou a Nova Zelândia poderiam ter Ornitorrincos como vizinhos. Outros se animariam a pesquisar os rituais de acasalamento não digo do porco espinho, mas do narval. Ou os hábitos alimentares do dragão (pimenta malagueta desde a primeira mamadeira), do unicórnio e do demônio da Tasmânia. Sim, eu sei que unicórnios e dragões não existem, mas se queremos um mundo de mais fraternidade entre todas as criaturas, precisamos achar espaço também para a fantasia.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Em favor do Carnaval


A postagem anterior teria sido melhor, sem amargura, se não fosse pela obra que uma loja resolveu fazer em frente à minha casa. Ninguém dorme só porque o dono quer que o trabalho, com 14 pedreiros trabalhando 24 horas por dia, fique pronto até a Quarta-Feira de Cinzas, para não perder nenhum minuto de vendas. Se os fiscais de renda tivessem aqui o mesmo ímpeto com que, em Chicago, pegaram Al Capone, eles fariam uma operação pente fino nestes comerciantes que esbanjam dinheiro só para mudar uma vitrine de lugar.
Mas o que falar em favor do Carnaval? O clima de folia se instalava no dia em que o meu avô levava os seis netos para uma visita à Casa Gallo, perto da estação de trem. Parecia um parque de diversões: fantasias de índio, pirata, cowboy e soldado da Legião Estrangeira, que eram as minhas favoritas. Tinha muitas fantasias para meninas também, mas eu não prestava atenção nelas. Lembro de um ano em que minha irmã e minhas primas se fantasiaram de chinesas. Fizeram até fotos em frente ao Hotel Quitandinha. Tenho que reconhecer que ficou bem mais interessante que o índio fajuta que eu usava.
A Casa Gallo oferecia outros brinquedinhos interessantes: como a embalagem metálica, dourada, de lança-perfume, que deixava a pele gelada. Meus primos gastavam as deles rápido, eu não. Sabia, de tanto ler gibi de faroeste, que munição não pode ser desperdiçada. Minha lança-perfume durava um ano, escondida no armário e quando finalmente acabava eu ficava de coração partido. Meu sonho era ter o armário cheio daquelas embalagens cor de ouro.
O que eu gastava à vontade era a água das bisnagas de plástico. O alvo eram os foliões vestidos de clóvis que passavam em frente ao portão de grade da Rua Souza Franco. A gente também espirrava nos carros que passavam e depois corria para perto do meu avô com cara de quem não fez nada.
Os bailes infantis não eram grande coisa. Lembro do Blecaute cantando com o sorriso simpático e de músicas engraçadas como aquela do "Eu fui dar uma volta no deserto do Saara, o sol estava quente e queimou a minha cara. Alalaô, ôôô, ôôô..." Esta marchinha alegre hoje valeria uma jihad e a ira eterna da Al-Qaeda.
A Casa Gallo tinha toneladas de confete e serpentina. Cada neto ganhava uma cota generosa, mas a gente achava mais divertido catar no chão as serpentinas que não tinham se desenrolado por completo e o confete acumulado com poeira e outros detritos. Esta mistura pouco higiênica era jogada uns nos outros, para desespero dos pais.
Depois tinha o lanche gostoso, sanduíche de queijo ou presunto, no pão de forma com a casca cortada, e guaraná.
Hoje, revendo as fotos, os adultos parecem se divertir mais do que as crianças, mas cumpriram sua missão de passar às novas gerações o gosto pela folia.

O verdadeiro Carnaval


O verdadeiro folião sai fantasiado de casa na sexta-feira à noite e só volta, carregado, ao meio-dia da Quarta-Feira de Cinzas. Neste meio tempo, ele se desliga de todos os problemas, e arranja outros.
Quando criança, o verdadeiro folião está sempre com a bisnaga d'água carregada para espirrar nos carros que passam e, quando vai a alguma matinê, passa o baile catando confetes e serpentinas no chão. Nesta fase da vida, seu maior medo são os clóvis, aquelas criaturas mascaradas, vestidas de mulambos, que têm um apito no lugar da boca.
Passada a infância, o verdadeiro folião se fantasia de mulher, sai no bloco das piranhas com os amigos e arranja brigas que não sabe por que começaram mas que acabam sempre mal. Nesta fase, beijam quem deixar e acordam numa rua qualquer com algum cachorro a lhe lamber a cara.
Na idade madura, o verdadeiro folião passa sermão nos mais jovens, dizendo que o verdadeiro carnaval era o de antigamente.

Poesia


As palavras brincam
de dança das cadeiras.
As que melhor seguem a melodia
e têm mais noção de espaço
é que fazem a poesia.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O segredo de seus olhos


A lista dos filmes que concorrem ao Oscar sempre cria muita expectativa em relação ao que não vimos ainda, mas o candidato que mais me chama a atenção é o trabalho de um diretor que é fiel ao seu estilo de contar histórias sobre a vida cotidiana, sempre com uma volta ao passado. Estou falando de Juan José Campanella, autor de obras encantadoras como "O filho da noiva", "Luna de Avellaneda" e "A mesma chuva, o mesmo amor". Campanella foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com "O segredo de seus olhos", em que pela quarta vez dirige Ricardo Darín.
Campanella é diretor de vários episódios de conceituadas séries da TV americana, como "House" e "Law and Order", o que mostra a excelência de sua técnica. Mas o que faz dele um diretor acima da média, um cineasta, que se destaca não só no cinema argentino, que é hoje o melhor cinema da América Latina, é a sensibilidade de seu tema favorito. "Sou interessado no tema da recordação, das memórias. Acredito que é importante encerrarmos as etapas de nossas vidas. Meus filmes têm isso, personagens que querem seguir adiante e precisam voltar ao passado para resolver algumas situações. Pode acontecer com todos nós: precisamos encerrar ciclos para começar uma nova vida", disse Campanella numa entrevista sobre seu novo filme.
O que encanta Campanella e seus admiradores são histórias de personagens normais em situações verdadeiras. Campanella não precisa de efeitos visuais nem de realismo mágico para dar vida à realidade. Ele conta com paixão uma história. No caso de "O segredo de seus olhos", é uma história de amor. "São vários tipos de amor. O amor sublime, o interrompido, o perverso. O amor é que conduz a história", disse ele.
A cada filme, Campanella se supera. Não que cada novo filme seja melhor do que o anterior. Ele se supera no sentido de nos surpreender com roteiros perfeitos e diálogos que ficamos repetindo pela vida afora. "Luna de Avellaneda" é um hino de amor ao passado, de exaltação da nostalgia, um poema sobre a necessidade de se valorizar as coisas boas que vivemos na companhia de pessoas amadas. "A mesma chuva, o mesmo amor" é romântico como "Romeu e Julieta", com todos os problemas que os adolescentes de Verona teriam enfrentado caso não tivessem morrido tão jovens. "O filho da noiva" é um acerto de contas em família, um guia sobre como vencer as dificuldades de se agregar quem é diferente, quem nos magoou, quem a gente gostaria que fosse de um outro jeito.
Talvez "O segredo de seus olhos" não ganhe o Oscar. Mas é o filme que mais me interessa ver.