quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Óóóóóóóó, disse Fernando Pessoa

Tem gente que gosta de um escritor por inteiro: romances, contos, poemas, bilhetes malcriados e até lista de compras no mercado. Acho difícil de acreditar. James Joyce, por exemplo. Para ser um intelectual respeitado, é preciso gostar de James Joyce. Li o livro de contos "Dublinenses" e gostei. Li o romance "Retrato de um artista quando jovem" e gostei. Mas, a partir daí as coisas ficaram difíceis. "Ulysses" e "Finnegans Wake" são ilegíveis. Neste último, Joyce exagerou, ao criar a palavra:
"bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohooordenenthurnuk!" Assim mesmo, com ponto de exclamação no final. Acho até que ele foi comedido na quantidade de pontos de exclamação. O que ele não teria feito, se naquela época já estivessem disponíveis os emoticons.
Fernando Pessoa é unanimidade universal. Mas quem diz que gosta de tudo que ele escreveu, inclui neste exagero alguns versos do heterônimo Álvaro de Campos que são dignos de James Joyce. Como por exemplo: óóóó---óóóóóó óóó---óóóóóóó óóóóóóóó. Ou: EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH.
Esta longa introdução é para dizer que os gênios estão além de nossa compreensão. No futuro, estudiosos mostrarão que o sentido da vida estava naquela palavra e nestes versos. Devemos agradecer aos céus por não estarmos mais aqui para ouvir a longa e bem fundamentada explicação, nem forçar nas vistas nas profusas notas de pé de página.
O que podemos fazer de prático agora é levantar uma sobrancelha sempre que alguém disser que ama tudo que Joyce, Pessoa e outros tantos escreveram. Picasso deve ter derramado tinta sem querer na tela. Mozart deve ter feito música barulhenta só para arreliar um vizinho ou uma visita. Hitchcock deve ter feito algum curta-metragem com enredo idiota só para seduzir uma loura bonitona.
Relaxa, gente! Se os gênios cometem uma ou outra bobagem, quem sabe a gente, que não tem talento, não faz ao longo da vida, nem que seja por acaso, uma coisa genial?

Flores azuis

Que em meu corpo habitem
o raio de sol mais brilhante,
o perfume das flores azuis,
e o canto de mil passarinhos.
Quero estar pronto para quando
você chegar com seu sorriso,
o carinho das fadas bondosas
e a alegria de que tanto preciso.

Recantos cor de rosa

Quando afago sua pele
sinto o veludo do desejo,
a luxúria delicada da seda
e a simplicidade do algodão.

Quando afago a sua pele,
sinto brotar miúdas flores
antenas de volúpia doce
que são encanto e sedução.

Quando afago a sua pele,
sinto meu corpo deslizar
para recantos cor de rosa,
paraísos de calor e paixão.

Ternura guardada

Meu amor por você é toque,
mas é também lembrança.
É o que minha pele sente,
mas é a ternura guardada,
tudo o que vivemos antes.
Meu amor por você é voraz,
mas é também homenagem.
Você é êxtase e saciedade,
meu desejo de maior prazer
e também amor e felicidade.

Pitanga

Queria te encontrar
debaixo da pitangueira,
te passar com os lábios
a fruta mais vermelha e
pegar de volta a semente
com o azedinho da fruta
e o doce de sua língua.

Teia prateada

Às vezes, quando estou só,
voltam à lembrança trechos
das conversas que tivemos
sobre assuntos que na hora
pareciam tolos, mas que hoje
dão sentido a tudo que vivo.
Éramos um só nas conversas,
a mesma alma procurando
uma saída para o mistério
de estarmos vivos e amando.
Palavras ligavam emoções,
iam de um coração a outro,
tecendo uma teia prateada
que me protegia da solidão.

De volta a 1942

Ao ver que Rick Blaine (Humphrey Bogart) escondeu os salvo-condutos no piano de Sam (Dooley Wilson), o zeloso funcionário do Museu Imperial fez uma busca e encontrou uma carta escondida em 1942 no estofamento de uma cadeira. Era a confissão de um agente nazista de que Stefan Zweig teria sido assassinado para que não aceitasse o convite para interpretar e ridicularizar o Fuhrer como destaque de carro alegórico no desfile de uma escola de samba.
Um comando nazista chegou a Petrópolis e trocou por cianureto as pastilhas de homeopatia que Zweig tomava para combater as frequentes dores de cabeça que o acometiam devido à saudade de Viena. Sua companheira Lotte teria sido uma vítima inocente. Os nazistas não sabiam que ela partilhava as pastilhas.
Zweig estava tentado a aceitar o convite da escola de samba. Era fisicamente parecido com o cabo austríaco que se tornou a encarnação de todos os males passados, presentes e futuros. Zweig só achava que um desfile numa Grande Sociedade teria maior repercussão, porque em 1942, elas eram mais populares do que as escolas de samba. E tinha uma de que ele gostava muito. Chamava-se, bem a propósito, Os Tenentes do Diabo.

Colhendo estrelas

Queria navegar à noite pelo oceano
para recolher na linha do horizonte
as estrelas que caem do firmamento
e com elas criar novas constelações,
destinos para civilizações perdidas,
povoar cantinhos escuros do universo,
acompanhar vagalumes até o infinito,
e enfeitar de cometas os seus cabelos.

Prece noturna

Que a deusa do amor
acalente o teu sono.
Que o amor que sinto
te cubra de mil carícias.
Que o céu que nos une
te leve minha paixão.

Viagem

Acordo assustado
pensando que perdi
o ônibus que levava
até onde você mora.
Saber que é sonho
em nada me alivia.
Queria era saber
se, mesmo que tudo
falhasse na viagem,
você me esperaria.

Sopro de jasmim

O que sou é um caminhar
pela noite infinita,
sob o manto de veludo
cravejado de estrelas,
debaixo das luzes
de diamantes frios e distantes.
Um andarilho sobre a areia,
restos de rochedos,
poeira de montanhas,
envolto pela maresia,
um sopro raro de fruta e jasmim,
tendo você ao lado,
a ternura que balança
em seus cabelos soltos,
e a esperança de encontrar,
numa curva do fim do mundo,
um sol morno, raios rosados,
um brilho sobre o oceano.

Companhia

Quando me deito,
é tua imagem que
cobre meus olhos,
é teu nome que
digo baixinho,
para chamar o
sonho e a paz
que busco acordado.

Pois se durmo
estou contigo,
sinto a companhia
do que há de calmo
nesta vida estranha
em que conheço
apenas você.

Almas doces e gentis

Quando a noite chega,
vêm acalentar meu sono
os anjos que vi na vida,
as almas doces e gentis
que me deram esperança,
aplacaram minhas dores
e me cobriram de carinhos.

No colo dos anjos da vida
minha mente voa longe,
onde os beijos são flores,
cheirando a baunilha e mel
e as palavras são cantigas
sobre os mundos mágicos
onde nascem os amores.

Caravela que o vento leva

Meu desejo é uma caravela
a costear as suas margens
em busca de uma praia de
areias mornas e macias.

Caravela que o vento leva,
entre golfinhos e gaivotas,
o branco inflado das velas
a cavalgar as ondas negras.

Meu porto é luz e calmaria,
teus braços na ponta do cais,
teus cabelos revoltos no ar
e um sorriso de amor à vista.

Porta da escola

Seu sorriso na
saída da escola
iluminava a praça
no sol de meio-dia.
Parecia amor à
primeira vista.
Parecia um acaso,
sorte inesperada,
o encontro marcado
de todos os dias.

Parte do paraíso

Penso em você
em cada momento
da rotina distraída,
quando sinto falta
de segurar sua mão
e imaginar seu sorriso.

Penso em você
para sentir que estou vivo,
para viver como um sonho
e para saber qual é a parte
que me cabe do paraíso.

Pardais

Gosto dos instantes que os pardais
roubam da calçada repleta de gente
para pegar qualquer farelo invisível.

Gosto dos olhos arredondados
com que os gatos enfeitiçam
suas presas de brincadeirinha.

Sou como os pardais castanhos
a viver dos farelos de quase nada
sob os olhares redondos dos gatos
que veem graça no meu destino.

Manto do universo

De todas as formas
que uma nuvem tem,
prefiro a que insinua
neve fina e flutuante,
algodão ou espuma,
colherada de suspiro.

De todas as formas
que uma nuvem tem,
prefiro a que deixa
o céu azul e some,
empurrada pelo vento.

Porque não há forma
branca que se compare
à imensidão imutável
do firmamento, que é
caminho do sol, da lua,
das estrelas e manto do
universo a que pertenço.

Bater de pálpebras

Sol esquivo de montanha,
água que escorre por entre
as pedras lisas do regato,
o amor é o que vi de relance
no olhar das meninas e,
quando olhei de novo,
não estava mais lá.

O amor tem a duração
de um suspiro, um bater
de pálpebras, o movimento
da língua que umedece o lábio
depois de um pesadelo.

Perfil de luar

Quando, ao final de tudo,
eu descer ao solo mais duro,
terei deixado bem alto no céu,
no mais distante dos sonhos,
o teu perfil de luar no caminho,
o rosto que a vida me deu de você.

Porque só você guarda estrelas
na ponta da língua rosada.

Sabiá

Sabiá de canto assobiado,
tua voz de veludo laranja
convida para um dia bom.

Quem dera eu pudesse
te chamar assim bonito
na melodia das manhãs.

E te contar os segredos
do orvalho quando se
deixa iluminar pelo sol.

domingo, 12 de setembro de 2010

Trem Fantasma


Era sempre a mesma coisa: eu insistia com meu avô para ir no Trem Fantasma, mas bastava o carro andar e eu mergulhava o rosto no braço dele para não ver nada. Ouvia os gritos e os rangidos do trem, mas não olhava. Ele ralhava comigo, dizendo que era um desperdício, mas nunca deixava de me levar. Nunca vi um cenário escabroso daqueles, mesmo depois que cresci e me contaram que eram ridículos, de tão infantis. Se não vi os fantasmas quando estava ao lado do meu avô, por que iria vê-los sozinho ou com outras pessoas.
Eu era muito apegado ao meu avô, até o dia em que um outro garoto me deu uma surra. Enquanto escorria sangue do meu nariz, percebi que ele não poderia me proteger de tudo. Na mesma época, vi "Hair" e decidi que queria ver a cara feia do mundo. Encarar de frente tudo que poderia haver de mais horrível nesta vida. Ser uma espécie de hippie, vivendo de raios de sol, flores e música, esperando o carinho da natureza e a fraternidade das pessoas.É claro que não aconteceu nada disso e eu nunca mais fui o mesmo.
A crueldade das pessoas não tem limites e o mundo pode ser um lugar hostil, insuportável, de se viver. Sofri a rejeição não só dos desconhecidos, mas de amigos e até de parentes. Algumas pessoas tentaram me agredir e até matar por ninharias. Vi amigos e parentes se destruindo, depois de sofrerem muito e desistirem de viver. Escapei da morte várias vezes. Algumas vezes, por sorte. Outras, nem sei por quê. Sorte que chegou bem perto de mim, no dia em que deixei de ficar milionário por um algarismo. Perdi amigos e namoradas, perdi o rumo de quem eu era, da pessoa que eu gostaria de ter sido.
Eu preferia não ter visto a cara horrenda do mundo, preferia ter fechado meus olhos para sempre no braço do meu avô. Embarcar no trem fantasma foi mesmo um desperdício: teria aproveitado melhor o meu tempo se tivesse desembarcado na minha paisagem interior.

A primeira vez que vi o seu rosto

Uma simples foto pode desencadear uma série de emoções. Algumas previstas e esperadas, como saudades e nostalgia. Outras, rebeldes e dilacerantes, difíceis de compreender, indomáveis. Estas últimas estão ligadas às armadilhas do tempo, seu jeito de ir e vir, sua forma de lembrar que não somos nada. Ou melhor, somos alguma coisa, mas não aquilo que pensamos ser, aquilo que achamos que controlamos e que é a nossa imagem convencional, nosso cartão de visita perante o mundo. Eu diria que o tempo mostra que somos aquela pessoa aflita, descabelada, com os olhos brilhando de paixão, os lábios entreabertos de perplexidade, que refletiu o momento em que nos demos conta de que perdemos o grande amor de nossas vidas, que deixamos de viver preciosos momentos de felicidade.
A foto que pode nos deixar assim, perdidos no tempo e no espaço, sem uma segunda chance, sem qualquer possibilidade de consertar nossos erros, pode ser a foto que nunca vimos antes de uma antiga namorada. Dá uma vontade imensa de ter estado ali, naquele dia, no momento em que a foto foi tirada, ver o que o fotógrafo viu, sentir o que ele sentiu ao registrar para sempre tanta beleza, tanta paixão, a dor eterna de uma vida tão efêmera, tão frágil, tão passageira.
Vemos na foto a namorada que nunca tínhamos visto e que nunca mais vamos ver. E dá a vontade de viver tudo aquilo, todos os dias em que ela foi assim tão adorável sem a nossa presença. Passamos muito distraídos por esta vida, deixamos de ver e viver o que é importante, procurando em outra parte o que está, ou esteve, ao nosso lado. É duro saber que a primeira vez que vi o seu rosto foi numa foto que me apareceu 40 anos depois.