terça-feira, 24 de agosto de 2010

A última vez que vi Lara

Yuri Jivago está num bonde quando vê Lara andando na calçada. Ele tenta chamá-la, desce do bonde, corre alguns passos, mas Lara não o vê. Yuri morre na última vez que vê Lara, o amor de sua vida, sua paixão proibida, a mulher para quem escrevia poema numa casa vazia, perdida no gelo da Sibéria. "Dr. Jivago" é um filme de David Lean, o diretor das causas perdidas. Se ele fosse brasileiro e católico, seu santo de devoção seria São Judas Tadeu.
Todos os filmes de David Lean mostram que a vida não faz graça a ninguém. O melhor talvez seja "Desencanto" (Brief Encounter), em que uma mulher casada se apaixona por um médico, também casado, que conheceu numa estação de trens. O romance dura pouco, mas é intenso. Algumas sessões de cinema, muitas xícaras de café, a fuligem da estação de trens. Nada dá certo e eles acabam se separando. Na platéia, pessoas que na vida real condenariam o amor clandestino, torcem para que eles abandonem tudo e peguem o primeiro trem para o terminal mais distante.
A última vez que vi Lara me deu a certeza de que o que mais quero é que seja Lara a minha última visão nesta vida. E que ela esteja com a mão sobre a minha e sorrindo para mim.

domingo, 22 de agosto de 2010

Até um dia, estrelinha!

Numa noite dessas
em que nada acontecia,
vi uma estrela forte,
dessas que noite alguma
esquece ou negligencia,
e resolvi me despedir dela
e das outras que vi um dia.
Abri a janela do quarto
que dá para uma esquina fria
e pisquei algumas vezes
a luz onde me escondia.
Que a estrela lá de cima
tenha visto minha despedida
e que a luz tímida que lhe dei
se incorpore ao seu brilho
e dê sentido a outra vida vazia.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Sonho que amanhece


















No ermo gelado que tudo emudece,
seguindo a sombra da sua ausência,
vejo a chuva que alguma luz reflete,
e me cerco das estrelas do caminho.

Procuro nas folhas secas das árvores
um pedaço de véu, amor desenhado,
as palavras que você deixou no vento,
o beijo que me chegou do passado.

Ergo a voz no manto escuro da noite
e tremo de solidão e arrependimento:
onde andará o sonho que amanhece,
azul glorioso que é você, meu alento?

sábado, 7 de agosto de 2010

Menina de Sagitário












Num verão luminoso
da Era de Aquário,
deixei os meus livros
para seguir feito brisa
a menina de Sagitário.

Era uma flor de tão leve,
pés descalços a flutuar,
e um jeito de colorir a pele
com o dourado do sol
e o movimento do mar.

Dançava com um sorriso
de domingo na floresta
e me falava sobre flores,
mistérios do universo e
de amor como uma festa.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Alma livre




















Escondo-me numa toca
de onde só saio à noite
quando a luz é pouca
e voam livres os sonhos.

A noite é minha casa,
de telhado transparente
para que a luz das estrelas
entre em pequenos focos
de multicores diamantes.

Minha coberta é a brisa
de veludo azul marinho
que alisa o descampado
e faz com que as flores
se inclinem ao seu lado,
balançando de mansinho.

Invento nomes doces
que façam companhia
ao encanto com que
você me surpreende
a cada novo dia.

Nomes de flores raras,
cores que são poesia,
murmúrios da floresta,
passarinhos exibidos
que se chamam alegria.

Por que estás distante,
se meus versos são quietos,
sussurros das águas,
segredos de ribeirinho?

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Ouro de mil amores


Girassol, miraflores,
doce de mirabela,
ouro de mil amores.

Pétalas de sonhos,
beijos de ribeiros,
veludos furta-cores.

Olhos de arco-íris,
cabelos de novelos,
raios de esplendores.

À procura de Holly


Estava em meu escritório às 10 horas de uma manhã cinzenta e chuvosa, à espera de algum cliente, enquanto lia minha correspondência. A manchete do jornalzinho dizia: "Ma-ma-mataram o Ga-ga-Gaguinho". Um senhor de óculos escuros e bengala branca passava em frente ao local onde se deu o crime mas jurava que não tinha visto nada. Outra testemunha se prontificou a fazer uma história em quadrinhos com o que viu, mas usava a Linguagem Brasileira de Sinais para dizer que não falaria nada. O promotor durão ameaçava processar os dois por obstrução da justiça. A única testemunha confiável era um anão que descreveu o assassino como um homem muito alto. Uma vizinha recusou-se a cooperar. Era óbvio que ela acalentava o sonho de que o criminoso, que disse apenas ser bonitão, voltasse à cena do crime e a convidasse para uma reconstituição do estupro. Não tinha sido estupro, mas ela não tirava essa ideia da cabeça.
Ergui meus olhos do jornal e deparei-me com uma loura estonteante, que me olhava com desprezo:
- Está lendo esse lixo?
- Sim - respondi - mas com espírito crítico.
- Então, por que você ria?
- É que o meu espírito crítico é meio gaiato.
Era primavera. Tinha que ser, pelo jeito como ela estava vestida. Sua roupa tinha mais cores do que os jardins suspensos da Babilônia. Tive ímpetos de regar seus pés e borrifar sua jaquetinha de veludo. Ela falava como uma ave recém saída do Jardim do Éden:
- Bem, vamos ao que interessa. Mas, está escuro aqui dentro, hein?
- A senhorita receia que a falta de sol faça murchar o violeta de seus trajes?
Ela fingiu que não ouviu, talvez porque pensasse que meu escritório ficaria ainda mais feio à luz do dia.
Ela contou então uma triste história. Estava em busca de um namorado de infância, de que só sabia o nome, a profissão de detetive particular e um gosto profundo pela poesia de Pablo Neruda. Foi neste ponto que passei a duvidar da sanidade mental de minha interlocutora. O que faria um detetive com a poesia? Procuraria rimas? Levaria versos livres para a cadeia? Ela disse que se chamava Holly, como a personagem de Hilary Swank em "P.S. Eu te amo", e explicou:
- É um nome fake, que uso no Orkut, mas sou mais conhecida por ele do que pelo meu nome verdadeiro, que é Maria Aparecida.
Olhei para o jornal que tinha acabado de ler e pensei nos desdobramentos do caso. Imaginei uma manchete sensacionalista do tipo: "Poema de amor leva detetive a perseguir colega". Imaginei a foto que usariam, tirada do meu perfil do Orkut: eu e um colega, ambos barrigudos, sem camisa, abraçados, num churrasco de confraternização, e a legenda: "Detetive não se conforma em não ser mais a musa de seu colega". Afastei os maus pensamentos e aceitei o caso. Precisava das cores de Holly em minha vida sombria. Mal sabia eu que em poucos dias estaria procurando não só o detetive-poeta, como também minha cliente, que desapareceu como as folhas que são levadas pelos ventos do outono. Mal sabia eu que em breve estaria escrevendo como um poeta, um mau poeta, desses que precisam de fertilizante para florescer.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A lição de Avner


Tem gente que faz depressa coisas coisas que, devagar, não faria. Faz depressa para não pensar sobre elas. Faz porque decidiu que ia fazê-las e se apressa para que ninguém o detenha com argumentos sensatos e emotivos. Esta foi a lição que Aver (Eric Bana) aprendeu em "Munique", de Steven Spielberg, de um dos integrantes do comando israelense que saiu pela Europa vingando as vítimas do massacre das Olimpíadas de Munique, em 1972. Uma vingança inútil, que gerou mais mortes e mais terrorismo.
Estou convencido de que não é só na guerra que as pessoas agem assim, contrariando seus próprios interesses, comprometendo sua própria felicidade. A vida é apresentada como uma corrida em que temos que ficar de olho na linha de chegada. Só depois, se chegarmos em primeiro lugar, é que poderemos ser felizes. Na escola, todos os meses, faziam festa para o primeiro da turma, o que tinha melhores notas. Ninguém falava que é preciso gostar do que se faz, que um trabalho deve ser alguma coisa que aproxime as pessoas e ajude o mundo a ser um pouquinho melhor. Que, em vez de uma corrida alucinante,a vida pode e deve ser um passeio distraído pelo parque. Poucos chegam ao topo, muitos se matam tentando. E que topo é este? Um degrau que vai logo ser superado por alguém mais determinado e menos escrupuloso.
A maior tristeza não é fracassar nesta corrida pelo sucesso. A maior tristeza é perceber que não se teve a sabedoria, o instinto aguçado, a percepção de ter se recusado logo no início a participar dela. Em vez de fazer uma faculdade pensando no diploma, ler os clássicos, ler tudo que poderia ser interessante. Mas lendo pelo prazer de ler, por curiosidade. Em vez de fazer um concurso, trabalhar no que se gosta, ser artesão, ser um poeta que nunca será conhecido, fazer um trabalho voluntário. Mas, pode-se morrer de fome assim. Sim, é verdade. Mas quem disse que temos de ser eternos? A vida do passarinho que vi morrer nas mãos de um amigo, quando eu era pequeno, vale menos que a minha? Certamente que não. O passarinho não causou mal a ninguém, enquanto que eu fiz sofrer a muita gente, incluindo a mim mesmo, por ter andado pela vida com pressa, fazendo coisas em vez de pensar se era certo fazê-las.